SÓ NÃO ENTRE EM NENHUMA CORRIDA DE CAVALOS


Na ocasião de meu aniversário de um quarto de século e do lançamento do meu primeiro livro de contos, procurei o meu tio-avô no interior para pedir conselhos. Ou para me acalmar do pavor, se não forem essas duas ações uma só. Estava ele no quintal com as suas ferramentas, sujo de terra nas botas e de graxa entre os dedos. Nunca para de fazer algo, nem quando conversamos com ele. Por isso é preciso encostar-se à parede e falar ante o seu perfil grave, concentrado. Comecei então a dizer frases seguidas, preocupações e anseios que, se não forem logo respondidas, causam um embaraço em quem as enunciou. Meu tio-avô deixou que isto acontecesse, que eu visse a bobagem com que pássaros, umbuzeiros e mandacaru me encarassem. “Olha...”, começou ele, polindo alguma peça de motor. “Só não entre em nenhuma corrida de cavalos, com o resto se salva. Do contrário, é você inquieto com o porte do animal, se ele é bom, se ele é veloz, é você precisando olhar toda hora pro lado, se medir, ver o outro distante. Nesse caso, só quem perde tem alguma chance de não viver depois em danação... E só alguma chance”.

Meu tio-avô viveu sempre na minha cidade natal do interior da Bahia, entre a roça e o comércio. Viajou a título de negócios, visitas de família e saúde. Anotou tudo o que pediram empréstimo, mas não negou pedido. Foi rigoroso com desvios de conduta e não compreendeu mudanças de época, o que distanciou pessoas e o tornou fácil para rótulo de ranzinza. Não era frequente eu mesmo querer ouvi-lo, um certo temor pelos seus cortes de raiz com os fingimentos e as amabilidades sociais que também aprendi, mas naquela tarde não procuraria outro lugar: “Isso de escrever vai te por com muitas vontades. Vai ter gente pra te olhar com diferença, outra parte com esse rancor de corrida. E vão te dar espaço pra você falar do que quiser e você vai querer beneficar os que te olham com diferença e contrariar os que sentem rancor. Nesse momento você entra no jogo e vai querer estar certo. Certo!”. Neste momento, meu tio-avô lava bem as mãos: “Na verdade mesmo, no duro das coisas, a gente não está certo nunca. A gente pode falar de pássaro, mas não pia, a gente pode contar a árvore, mas não tem folha... O que se faz é montar um sentido, colocar beleza, mas certo ninguém está: todo mundo só pode olhar de dentro, e o certo é quem apontaria de fora”.

73 anos, e não leu muito mais do que a Bíblia e seus livros sem capa. Em alguns, chegou ele a riscar o título para não saberem qual. No mais, meu tio-avô tem a perícia dos trabalhos manuais, o que não consegui imitar com o tempo. Sei que parto do pressuposto de me saber do “intelecto”, e daí prescindir das mãos, porém já entendo quanto a separação foi uma bobagem. Os antigos sabiam que mexer com a matéria era um pretexto para a transformação interna. Meu tio-avô me entregou a chave de fenda e os parafusos com a porca. Não queria que eu o ajudasse, e sim que eu o entendesse. E disse por fim: “O que interessa é estar com outras pessoas, elas fazendo o que quiserem. Ninguém se realiza com coisa alguma. Não tem nada que faça bem, a gente é que faz as coisas serem boas ou não. Quem for atrás de lua pensando no foguete não vai achar a lua nem chegando lá! Aperte isso aí mais... Vamos, aperte! Olha... O mundo é só pretexto”.

Quando nós nos sentamos para o café com pão e manteiga, ele me contou histórias de coices e plantações, falou de traidores e de política. A minha tia-avó se aproximou com mais leite e me sorriu secretamente. Ele só parou quando cansou-se de falar e emendou: “É só porque você pediu. Nosso gosto é de expandir os caminhos e levar pessoas com a gente. Se você entrar em algum lugar que não caiba mais ninguém, vai morrer ali. A todo lugar que você for, e ainda mais se achar que um dia for subir, busque levar gente com você. Se não é por generosidade, é por sobrevivência. E eles que levem outras... Que na força do se fazer sentido, viver pra si mesmo carece de tanta explicação quanto viver pro outro. E sem-razão por sem-razão, Deus o sabe, a melhor é a acompanhada”. Assim terminou o pão molhado no café, limpou as mãos grandes no pano de prato por perto e se levantou para entrar.

Saulo Dourado é escritor e professor de filosofia.